Furto e defraudação em Compostela

Às vezes a retórica atordoante e interesseira que rodeia o ordenamento jurídico do Estado de direito, só apta para altos funcionários do sistema ou por volta do sistema, deixa à vista os duplos (ou múltiplos) estándares que o sustentam.

Por José Tubío | Compostela | 14/04/2012

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Um exemplo é o artigo 234 do código criminoso espanhol, que pena com entre 6 e 18 meses de prissão a quem furte mais de 400 euros ou bens móbeis de equivalente valor. A pessoa à que se furta pode ser física ou jurídica. Com uma exceção: Fazenda a respeito dos tributos defraudados. Para este caso há que ir ao artigo 305, que estabelece uma pena de prisão de 1 a 5 anos se a quantia do defraudado ultrapassa os 120.000 euros. 

 
Se a condenação por furto de 401 euros te pode levar a prisão um mínimo de meio ano e até um ano e meio (que para determinados supostos se podem converter em 3), furtar em impostos às Fazendas estatais 119.999 euros não implica em nenhum caso privação de liberdade. Nem existência de delito.
Furtar a três pessoas diferentes uma soma total de 401 euros é constitutivo de delito: privação de liberdade de 6 meses, no mínimo. Porém, no caso da expoliação fiscal fraudulenta a quantia computa-se separadamente para cada Fazenda (local, autonómica, estatal ou foral) e para cada imposto. Assim, por exemplo, para um mesmo ano fiscal, defraudar: 119.999 euros em conceito de IRPF + 119.999 em conceito de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) + 119.999 no imposto autonómico de atos jurídicos documentados + 119.999  de impostos locais como o IBI, até um total de 479.996 euros (a cifra pode ser maior: há muitos impostos); não é constitutivo de delito criminoso. Poderá ser constitutivo de infracção administrativa, no seu caso.
 
As diferenças não rematam aqui. O artigo 234 in fine adverte de que o delito de furto também se verifica de realizarem-se três num ano que por separado não ultrapassem os 400 euros, mas sim conjuntamente. Contrariamente, o artigo 305.2 aclara que o cálculo da quantia de 120.000 referir-se-á ao período impositivo anual para tributos periódicos. Tomando o exemplo prévio: podes defraudar 479.996 euros o 31 de dezembro dum ano e outros 479.996 o dia seguinte sem cometer nenhum delito.
 
Para que exista o delito de defraudação tem de haver uma conduta dolosa, quer dizer, intencionalidade, ficando excluídos supostos de erro e inclusive a imprudência. Paralelamente, no furto tem de haver ânimo de lucro e ademais ausência de violência (a aplicação de força para efetivar a apropriação transforma-o num delito de roubo, mais grave no referido às penas e sem quantia mínima para o roubado).  
 
Com uns tipos delitivos comparáveis objectivamente por via da quantia, que exista este assaz diferente tratamento pode atender sobretudo a dous motivos. O primeiro é que ninguém gosta de pagar impostos, cuja mais comum consideração é pouco menos que a de roubo às pessoas por parte do Estado. Evitar este roubo, apesar de todo o mantra da sanidade e ensino “públicos”, não está tão mal visto como furtar. Se o tratamento se equiparar, se calhar o rejeitamento ao ato de furtar seria equivalente ao rejeitamento do ente estatal. Talvez porque acompanhando tão propagandísticas receitas públicas venham outras como o gasto militar, o resgate às armas de desafiuçamento maciço com indemnizações milionárias para os seus diretivos, as ajudas diretas, indiretas e privilégios à Igreja, o controlo e fomento de determinadas indústrias e empresas em detrimento doutras, os subsídios a patronal, sindicatos e partidos políticos, os salários de políticos e assessores, a imposição do castelhano e o controlo da cultura, etc. 
 
Como resultado desta distinta valorização social, se furtas (sem empregar força) um computador duma delegação de Fazenda (ou duma biblioteca escolar ou dum centro hospitalário) valorado em 401 euros, és um delinquente. Se a falta do computador quebranta a prestação do serviço público a pena pode ser de até 3 anos de prissão. No entanto, impagar impostos que permitiriam adquirir 299 computadores como o furtado não é delito.
 
O segundo motivo do tratamento diferencial podem ser os futuros possíveis réus. Para defraudar 120.000 euros em conceito de IRPF há que ganhar aproximadamente o duplo anualmente. Para os defraudar por via do IVA, é preciso ter vendido bens num ano por valor de quase 700.000 euros para o IVA geral ou vivendas por valor de 1,7 milhões de euros (IVA do 7%). Porém, os sujeitos ativos do furto entram habitualmente na categoria de carteiristas ou substratores de lojas e supermercados e quando não, costumam ter ingressos oficiais de menor quantia ou, diretamente, carecerem deles. A nacionalidade ou etnia, o nível educativo ou ainda a raça, podem ser distinções facilmente observadas nas estatísticas dos réus de um e outro tipo delitivo; bem como a quantidade de condenações: frequentíssimas as de furto, raras as de defraudação. Se calhar a frequência seria semelhante ou ainda mais numerosas as segundas se as quantias se igualassem, quer polo alto, quer polo baixo. Talvez por isso o furto se encontra no título do código criminoso em que se relatam os delitos “contra a ordem económica” (existente). 
 
O réu de furto não costuma intervir nem ter peso no sistema político conhecido como democracia representativa. No entanto os potenciais réus de fraude fiscal costumam ser os que o dominam, situados em posições de relacionamento privilegiado com os órgãos do Estado, em colaboração com o estamento político-administrativo ou formando parte diretamente dele, redigindo os códigos criminoso e tributário. 
 
Neste momento o alcaide de Santiago de Compostela, Gerardo Conde Roa, militante do Partido Popular, advogado e promotor imobiliário, está arguido por um pretenso delito de defraudação. Segundo a Agência Tributária espanhola a quantia do defraudado em conceito de IVA ascende a 291.000 euros. Segundo informa a Candidatura do Povo, o seu futuro advogado será Gonzalo Rodríguez Mourullo (por enquanto é outro), um dos redatores do vigorante código criminoso espanhol aprovado em 1995. A defesa, polo que se sabe, fundamenta-se em negar a presência de dolo (intencionalidade) na falta de pagamento. O juiço vai servir para discernir se a falta de pagamento de impostos (que em si própria é um facto: conforme ao noticiado, existe já um embargo salarial) é ou não constitutiva de delito criminoso à luz do direito do Estado.
 
Num momento económico como o atual, de sensibilidades à flor da pele e crescente entendimento das entranhas do sistema político, pode que o alcaide do concelho de Santiago seja enviado ao fundo dos infernos polo seu partido, máxime se o pretenso delito se confirmar em sentença. Seja ou não imediatamente substituído, o que sim poderia fazer é liderar um movimento revolucionário de insubmissão fiscal. Nem todo o mundo tem o peito de ter impagado 291.000 euros a Fazenda e continuar à cabeça da máquina arrecadadora municipal.
 
Em qualquer caso e em outra ordem de cousas, como toda a gente de Compostela sabe: tenham cuidado com os furtos, sobretudo nas proximidades da catedral.

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José Tubío Rois (1979). Estudei progamação de aplicações informáticas e, como bolseiro da fundação Juana de Vega, engenharia técnica florestal e engenharia de montes. Depois licenciei-me em direito. Trabalhei, entre outras cousas, na exploração agrária familiar, na defesa contra incêndios, fui chefe de formação do centro de formação e experimentação agrária de Becerreá e, na atualidade, trabalho no ministério de administrações públicas. Sou sócio da AGAL e da AC Pró-AGLP.