"O medo como instrumento do poder

Os que no decurso da história ostentaram o mando econômico e político sobre a população sempre utilizaram o medo como instrumento para adquirir e/ou consolidar o seu sistema de dominação. Este sistema estendia-se a todas as esferas da existência humana, incluída a religiosa.

Por Ramón Varela | Ferrol | 20/04/2017

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 A religião e os deuses são criaturas humanas que sempre estiveram subordinadas ao poder econômico-político, e, por isso, não é surpreendente que copiassem também os seus métodos para impor-se sobre a cidadania, e, por tanto, o medo como instrumento de aquisição e/ou consolidação do seu sistema de dominação sobre os fieis, que é a única maneira de ser úteis para contribuir com o mando político no mantimento da ordem socioeconômica e política.
     
Diz a Bíblia, “temei ao Senhor, e servi-o com sinceridade e com verdade; deitai fora os deuses a que serviram vossos pais de além do Rio, e no Egito, e servi ao Senhor” (Josué 24, 14). Em contrapartida, Javé cumprirá com os que lhe temem, porque é um Deus terrível que gosta da reverência e da submissão das suas criaturas ás que considera como as suas escravas. Javé que era o deus tribal de Jerusalém, onde recebia culto, chegou, com esse ou outro nome, a impor-se praticamente em grande parte do mundo e com ele a atitude de temor e submissão. Os que cumpram os seus mandados têm a proteção de Deus e não devem atemorizar-se. O Senhor disse-lhe a Josué: “Não to mandei eu? Esforça-te, e tem bom ânimo; não te atemorizes, nem te espantes; porque o Senhor teu Deus está contigo, por onde quer que andares” (Josué, 1, 9). Os Provérbios dizem que “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (9,10), e, portanto, o pilar básico para o conhecimento da realidade. Nestes textos, como podemos observar, Deus é concebido como pirômano e bombeiro ao mesmo tempo. Algo semelhante se pode dizer no caso do Islame. O Alcorão ordena: "Ó fiéis, temei a Deus! E que cada alma considere o que tiver oferecido, para o dia de amanhã; temei, pois, a Deus, porque Deus está bem inteirado de tudo quanto fazeis" (surata Al Haxr 59:19). Os seus aderentes são os únicos que poderão vencer o medo. “Quando vos chegar de Mim a orientação, aqueles que seguirem a Minha orientação não serão presos do temor, nem se atribularão”. Surata Al Bacara, 2, 38). Um dos principais deveres dos fieis é a fidelidade estrita á crença independentemente de como se adquiriu e das vicissitudes pessoais. Isto explica que um dos pecados mais graves nestas religiões é a apostasia, ou seja, o abandono da militância na organização. Estas ordens e/ou recomendações das três grandes religiões monoteístas apelam a uma pulsão humana universal que é o medo ao incerto, medo á morte, medo á sorte de cada um após o falecimento e como mecanismo de coesão ideológica e de eliminação do dissentimento.
         
Platão intentou aproveitar a pulsão humana do medo, neste caso ao que passará após a morte, para fazer aceitar a doutrina da imortalidade da alma que deveria servir como um instrumento político para que os indivíduos reprimissem as condutas disruptivas sem ter necessidade de ser constantemente vigiados polos forças policiais. Os indivíduos que cumpram as normas cívicas e morais seriam premiados com uma vida de felicidade, enquanto que os demais seriam sepultados no Tártaros fervente, de onde não saem jamais.
        
Houve algumas filosofias, como a epicureia e a estóica que pretendiam, polo contrário, libertar o home do temor á morte, do temor aos deuses, á doença, ao sofrimento, etc. Dizia Epicuro que a morte, o mais terrível dos males, em nada nos afeta, porque quando nós vivemos, ela não está e uma vez mortos, nós já não estamos. Do que se trata, neste caso, é de forjar quimeras com as que um chegue a auto-sugestionar-se. Tampouco há que temer os deuses porque, ainda que existem e vivem felizes num mundo superior, não se preocupam de nós. Trata-se duma libertação ilusória que consiste em negar a pretendida origem dos males que podem afetar o ser humano. Os estóicos adotaram outra via, que consistia em fortalecer o ânimo para enfrentar-se ao destino, que é inevitável. O que sucede provém da Razão Universal que atua inexoravelmente e sempre faz o melhor. Por tanto, o ser humano deve suportar com ânimo sereno as maiores desgraças, porque são inelidíveis e ao indivíduo sempre lhe acontece o melhor.
            
O poder político utiliza as medidas coercitivas e as penas legais para impor o seu sistema de dominação, que pretenderá fazer passar como obrigatórias em consciência para que a cidadania chegue a adotar as condutas que se esperam dela por iniciativa própria, que sempre é um mecanismo muito mais efetivo e barato que a vigilância policial e/ou a coerção por meio de multas e penas. A religião vai prestar-lhe um serviço defendendo a obrigatoriedade das leis em consciência, a legitimação da autoridade política, a ciência divina de todo o que acontece, o temor ás penas de ultra-tomba e os prêmios que lhe esperam aos cumpridores. Muitas vezes ambos atuam de cônsono enquanto que o Estado vai dotá-la da sua proteção, convertê-la em parte do sector extrativo e dotá-la dum braço executório das penas que imponha a autoridade eclesial. Durante o período inquisitorial, os relaxados eram entregados aos tribunais reais para ente lhe impusesse a pena capital, porque os inquisidores não podiam fazê-lo. Estes tribunais, contudo, limitavam-se a validar as condenas que o tribunal inquisitorial fixara. Isto explica o habitual maridagem entre os poderes estatais e religiosos de turno, que no cristianismo derivou no tandem da espada e da cruz.
         
Além de instrumento de consolidação do poder político, o Estado ou os partidos políticos governantes também utilizaram o medo como instrumento de anulação da pluralidade cultural, lingüística, nacional, processo muito premente e exitoso na França e muito premente, mas menos exitoso na Espanha. O modus operandi é universal. O primeiro que faz a facção ou partido dominante é estabelecer um alvo desprezado socialmente, coincidente com algo indesejável, e que produz aversão ou medo na cidadania, que pode ser o comunismo, anarquismo, fascismo, separatismo, populismo, etc. e a seguir, associar o contendor com esse alvo para desprestigiá-lo socialmente e evitar que possa converter-se em alternativa real de poder e conseguir os seus objetivos.
 
Seguramente que se se lhe pergunta a qualquer dirigente político qual é a relação que estabelece entre ética e política manifestará que lhe dá a prioridade á primeira sobre a segunda. Mas isso não deixa de ser uma falsidade mais exigida polo seu rol. Em realidade, eu não conheço nenhum político que não seja maquiavélico na sua atuação, entendendo por tal a pessoa que afirma que o fim justifica os meios. Isto, evidentemente, admite graus e um pode resistir-se a utilizar alguns meios que outro utiliza sem reparo, como a assassinato, mas se nos referimos á mentira, creio que está amplamente aceitada por todos. Em nível do Estado espanhol, um tem a impressão que a mentira se converteu em marca indelével da marca Espanha, mas nisto parece que não somos a exceção.
 
 Na França, os partidos conservadores avivam o medo dos seus concidadãos ante uma eventual vitória do candidato da esquerda radical Mélenchon, associando-o com o regime de Maduro em Venezuela. Na Espanha, fazem igual com Podemos com objeto de que não logre consolidar-se e converter-se em alternativa de governo no país com objeto de continuar mantendo o poder político ininterruptamente nas suas mãos.
 
Nos EEUU de América, o candidato e depois presidente Trump não se recata de mentir a eito, sem nada que possa constrangê-lo, e já se levam feitos listagens com as suas mentiras e tergiversações. Como inimigo exterior número um foram escolhidos os islamistas, e, seguramente nisto coincidiriam com ele muitos cidadãos do mundo, que olham espantados os atentados indiscriminados contra os ocidentais e também contra os seus próprios concidadãos. Porém, não a modo de justificação para o que não tem justificação, mas sim de explicação, cumpre dizer que o enquistamento crônico do problema palestino, agravado com uma população submetida à ocupação militar e a um bloqueio que implica enormes restrições de movimento na entrada e saída de bens e pessoas desde o ano 2007, e, de vez em quando as hiper-vinganças por parte de Israel, com a cumplicidade dos EEUU, contra a população palestina não ajuda nada na busca duma solução definitiva do problema. A desgraçada guerra do Iraque de 2003, organizada polos EEUU com objeto de controlar o subministro barato de petróleo e justificada com o pretexto mendaz de que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição massiva, supôs uma tremenda deterioração das relações entre os islamistas e o Ocidente. Filho deste aventureirismo militar foi o nascimento do Estado Islâmico.
 
EEUU foi um país que esteve tradicionalmente implicado em guerras. Há mui poucos presidentes que não fizeram aventuras militares, mas parece que Donald Trump quer superá-los a todos. De momento, quando ainda não leva três meses na Casa Branca, já desencadeou o ataque contra Síria e o lançamento da super-bomba não-nuclear de dez toneladas de peso sobre Afeganistão. Quando o mundo necessita dotar-se duma nova ordem econômica e dumas relações sócio-políticas pacíficas e mais construtivas entre os povos, a via que elege este mandatário é a de assustar com uma demonstração de poder e uma escalada militar que vai deteriorar as condições de vida da cidadania, ainda que não a vida do conglomerado oligárquico-político imperante, que é o beneficiado por estas novas aventuras. Parece que o que se pretende é antepor os interesses egoístas dos habitualmente beneficiados polo sistema aos da cidadania. O desalentador é a resposta da cidadania americana ante esta bravata de Trump, que lhe fez incrementar a popularidade em dez pontos. Está muito bem que se queira que o próprio país mande e ocupe o primeiro posto, mas os demais países também legitimamente vão ter as mesmas aspirações, e com bombas e bravatas não se resolve nada. 
Trump também fez de ferrabrás com México, país ao que se pretendeu atemorizar ameaçando-o com obrigar-lhe a pagar, direta ou indiretamente, um muro que em nada os beneficia, numa atitude de desprezo absoluto aos seus cidadãos. Intentou também desequilibrar o projeto europeu por motivos econômicos quiçá com a finalidade de eliminar a competência comercial principalmente da Alemanha, e pretende que os demais acatem as suas consignas de incrementar os gastos militares até o 2 por cento do PIB. O resultado seria um mundo com muitas mais armas e muito mais medo, e, ao mesmo tempo, com menos ajudas para os que têm menos, porque a sorte dos excluídos do sistema não parece preocupar-lhe o mais mínimo.
 

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