De estatuto catalão a estatuto do PP

O 30/09/2005, o Parlament aprova o novo Estatut com os votos favoráveis de ERC, PSC, CiU e ICV-EUiA e com o não do PP. Em outubro de 2005, o PP de Mariano Rajoy inicia uma cruzada por toda Espanha, na que gastou meio milhão de euros, solicitando assinaturas em contra da reforma do Estatuto de Catalunya, por considerar que é «gravemente prejudicial» para os catalães e para o conjunto dos espanhóis. Ou seja, que uma reforma do Estatut aprovada no Parlament por todos os partidos catalães, salvo o PP, é acunhado de gravemente prejudicial para os catalães por um partido muito minoritário nesta Comunidade, e, ademais, gasta nesta campanha uma quantidade mui notória para combatê-lo, e isto fá-lo um partido que se financiou irregularmente durante décadas, segundo se está a saber agora, o qual pareceria implicar que esse dinheiro para ir em contra dos catalães saiu, em última instância, do peto de todos os espanhóis, como lhe disse no seu momento José Blanco, e por tanto também dos próprios catalães.

Por Ramón Varela | Ferrol | 12/07/2017

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O povo de Catalunya responde o 18/02/2006 com uma grande manifestação em Barcelona a essa cruzada do PP sob o lema “Somos uma nação e temos o direito a decidir” para exigir que o Congresso aprove sem recortes o Estatut reformado.
 
O 30/03/2006 o pleno do Congresso aprova o projeto de reforma do Estatut por 189 votos a favor (PSOE, CiU, PNV, IU/ICV, CC-NC e BNG); 154 em contra(PP, ERC, e EA) e 2 abstenções (Chunta Aragonesista e Nafarroa Bai). Logo de ser aprovada a reforma do Estatuto polas Cortes espanholas e laminado grande parte das suas disposições, às que, segundo Afonso Guerra, a comissão constitucional do Congresso lhe passou «cepilho» como um «carpinteiro», deixando-o limpo de qualquer suspeita de inconstitucionalidade, foi submetido a votação popular e aprovado em referendo polo 74 por cento da cidadania de Catalunya o 19/06/2006. Devemos destacar que Afonso Guerra é um espanholista de pro, que sem a mais mínima análise das causas que conduziram à situação atual, não duvida em pregoar que se aplique já o artigo 155 de CE para deixar em suspenso a autonomia catalã. ERC reage ante os recortes do Congresso retirando-lhe o apoio ao Estatut.
 
Este, apesar de ser laminado polas Cortes, é o estatut do povo de Catalunya porque decidiu aceitar esse recorte e considerou que o que ficava em pé representava um avanço significativo no autogoverno de Catalunya. Mas, o que o PP não consegue pola via das urnas em Catalunya vai procurar consegui-lo manobrando nos despachos e nomeadamente valendo-se dum TC irregularmente constituído, por ter bloqueado a sua renovação o PP e o PSOE para assegurar-se uma maioria favorável aos seus interesses respetivos, e proclive a favorecer as políticas dos partidos que nomeiam os magistrados que o integram. Aqui veremos alguns dos pontos mais conflituosos deste litígio: nação, língua, Conselho de Justiça de Cataunya e bilateralidade, num clima político de acosso contra as aspirações dos povos periféricos e em prol da reconcentração do poder na capital do reino.
 
O 31/07/2006, o PP apresenta um recurso de inconstitucionalidade contra a reforma do Estatut no que impugnou 128 dos 223 artigos do Estatuto, que pretendia deixar sem efeito aquelas matérias que introduziam qualquer novidade significativa de autogoverno na reforma estatutária e incluso alguma que tem mais bem um caráter sentimental ou que se reduz à expressão dum desejo, como é a menção da nação no Preâmbulo nos seguintes termos: "O Parlamento de Cataunya, recolhendo o sentimento e a vontade da cidadania de Catalunya, definiu de forma amplamente majoritária a Catalunya como nação”. O PP defendia que era improcedente a denominação de Catalunya como nação, porque, desde o ponto de vista constitucional, somente há uma nação que é a nação espanhola, à que se refere a CE no artigo 2, que diz: “A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas”. Este artigo da CE foi fruto dum consenso logrado num momento duma correlação de forças parlamentares e os poderes fáticos muito singular. Entre as forças parlamentares figuravam por uma parte os partidos da direita e centro direita: Aliança Popular, germe do atual PP, e a UCD, que com 181 deputados tinham a maioria absoluta; as esquerdas: PSOE, PSP e PC, e os nacionalistas bascos e catalães. Os poderes fáticos estavam representados por umas forças armadas que o governo da UCD controlava com muita dificuldade, e que supunham uma ameaça latente e constante de intrigas golpista.
 
            A influência dos poderes fáticos fez-se sentir principalmente na redação dum dos artigos mais problemáticos da CE, o artigo 2, quando se abordou a discussão sobre o termo nacionalidades, tal como o refere o relator constitucional Jordi Solé Tura, do PSUC (Partido Socialista Unificado de Catalunya). Os deputados da Alianza Popular e parte dos da UCD pediam a sua supressão por entender que podia dar lugar a identificá-la com nação; a eles somaram-se alguns regionalistas que entendiam que isto introduzia uma discriminação entre nacionalidades e regiões. Os comunistas e os nacionalistas defendiam como um casus belli, uma causa de ruptura, o mantimento deste termo polo menos no artigo 2, pois já fora eliminado do Título VIII. Num momento de fortes pressões exteriores sobre o governo da UCD, chegou-lhe a Solé Tura um papel escrito à mão precedente da Moncloa no que se propunha a redação que substancialmente era a que ficou como definitiva. “A resposta que me deram os representantes de U.C.D. é que não se podia variar nem uma coma, porque aquele era o texto literal do compromisso alcançado com os setores consultados. Evidentemente, não se especificou quem eram estes setores, mas não é difícil adivinhá-lo” (Naconalidades y naconalismos em España, A.E., Madrid, 1985, p. 100). Ou seja, que certos setores que não se apresentam às eleições, e que em todo caso não formam parte do poder legislativo, indicam-lhe aos legisladores, teóricos representantes da soberania popular, dum modo imperativo que é o que têm que aprovar e estes submetem docilmente aos seus mandados. Algumas destas pressões são compreensíveis em certo momento histórico, mas o que não é compreensível é que um artigo destas caraterísticas, assim como o artigo 8, que outorga ao exército a garantia da soberania de Espanha e o mantimento do ordenamento constitucional, mas deveriam já ter sido eliminados e nunca considerá-los como artigos intangíveis que alguns partidos se resistem a problematizar e que querem que a cidadania venere per saecula saeculorum.
 
O dissenso na interpretação do artigo 2, surge quando se quer precisar o significado do termo nacionalidade, que, em sentido concreto se identifica com nação, mas que outros interpretam como nação de segunda categoria, e, portanto, uns consideram Espanha como uma nação de nações e outros como uma nação de nacionalidades, ou seja, de nações de segunda categoria, sentido este último que foi o que prevaleceu durante o período recentralizador pós-constitucional e o assumido polo PP e PSOE, de tal modo que se pode dizer que de facto triunfou a interpretação dos setores mais espanholistas que sempre consideraram Espanha como uma nação única e indivisível em vez de defini-la como um conjunto de povos que se unem para realizar um projeto comum em benefício mútuo.  Praticamente nos nossos dias o termo nacionalidade é uma denominação totalmente inoperante e sem consequências políticas de nenhuma classe.
 
No anteprojeto de constituição formulava-se em termos mais satisfatórios a estrutura do Estado espanhol. Dizia o seguinte: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha e a solidariedade entre os seus povos e reconhece o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram”. Nele dispõe-se a unidade política do Estado e reconhecem-se, por uma parte, os diversos povos que o conformam e, pola outra, o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que integram Espanha. Evitam-se expressões que atuam a modo de corpete infranqueável como «indissolúvel unidade», «pátria comum e indivisível», que dificultam qualquer nova reformulação da distribuição territorial do poder no decurso do tempo, e que criam mal-estar porque se ignora a realidade do Estado espanhol que é plurinacional, plurilingüística e pluricultural. Na CE somente se alude aos povos de Espanha no preâmbulo, que não tem efeitos jurídicos, e no artigo 46, quando se fala do patrimônio dos diversos povos de Espanha, por conseguinte, sem conotação política de nenhuma classe. No resto articulado sempre se cita a um único povo, o povo espanhol, como o representante da soberania, quando se alude ao Defensor do povo, que implica que considera que existe um povo único, que, evidentemente, é o povo espanhol, e quando se fala da representação política da que se diz que as Cortes representam ao povo espanhol e nunca aos demais povos de Espanha, que são ignorados. Uma constituição respeitosa com a diversidade proclamaria que a soberania reside nos povos que convivem no Estado espanhol. O falho do TC considerou que a inclusão do termo nação, junto com a menção da "realidade nacional de Catalunya", carece de "eficácia jurídica interpretativa", única natureza que possuem os preâmbulos ou exposição de motivos, carentes totalmente de valor normativo e por tanto alheios a poder ser declarados inconstitucionais.
 
Também sublinhou o PP de Rajoy três dias antes da apresentação do recurso a inconstitucionalidade do trato que se assigna ao catalão no artigo 6 do Estatuto de Autonomia reformado, pois estabelecia que “A língua própria de Catalunya é o catalão. Como tal é a língua de uso normal e preferente das Administrações públicas e dos meios de comunicação públicos de Catalunya, e é também a língua normalmente utilizada como veicular e de aprendizagem no ensino”. Alegava Rajoy que se lhe dava um trato «privilegiado» à língua catalã devido a que se considera o seu conhecimento como um dever e como a língua do ensino, o qual, supostamente, atentaria contra o «direito dos pais a eleger a língua na que querem que estudem os seus filhos». Esta manifestação responde a política de hostilidade deste partido contra todas as línguas do Estado salvo o espanhol, a língua superprotegida e imposta coativamente pola legalidade imperante, como os galegos conhecemos sobradamente por experiência. O TC eliminou o adjetivo preferente por considerar que afasta o trato à língua própria de Catalunya do bilingüismo perfeito. No artigo 6.2. do Estatut reformado diz-se que “Todas as pessoas têm direito a utilizar as duas línguas oficiais e os cidadãos de Catalunya o direito e o dever de conhecê-las”. O TC falhou que "O dever de conhecimento da língua catalã não pode ser entendido como obrigação juridicamente exigível com caráter generalizado". Isto significa que nem sequer na Catalunya se pode legislar para que a sua língua esteja numa igualdade de condições normativas que a língua do poder colonizador, e muito menos, como seria exigível, privilegiar o conhecimento e uso das línguas próprias das diversas comunidades que a possuam, apesar de que todos os catalães e os demais habitantes das comunidades com língua própria, pola pressão da mídia, conhecem e falam o espanhol, enquanto que muitos são incapazes de falar corretamente o catalão.
 
Outro motivo do recurso foi a proposta de criar uma espécie de seção do Conselho Geral do Poder Judicial para Catalunya, chamado Conselho de Justiça de Catalunya, que, segundo a redação do Estatut, é “o órgão do poder judicial em Catalunya. Atua como órgão desconcentrado do Conselho Geral do Poder Judicial, sem prejuízo das competência deste último, de acordo com o previsto na Lei Orgânica do Poder Judicial”. O PP de Rajoy considerava que, apesar de todas essas reservas, isso rompe com a unidade judicial de Espanha. O TC declarou-o inconstitucional e negou qualquer possibilidade de que a justiça se descentralice, ainda dpendendo do CGPJ.
 
Também houve discrepâncias do PP a respeito do princípio de bilateralidade, que tende a criar uma relação entre duas entidades com personalidade própria num plano simétrico: a Generalitat e o Governo de Espanha, por considerar «que privilegia a Catalunya e senta as bases dum modelo confederal assimétrico» e supõe «uma desigualdade inadmissível na Constituição». O estatut aprovado polas Cortes apresenta, no artigo 3, da maneira que segue o princípio de bilateralidade. “As relações da Generalitat com o Estado fundamentam-se no princípio da lealdade institucional mútua e regem-se polo princípio geral segundo o qual a Generalitat é Estado, polo princípio de autonomia, polo de bilateralidade e também polo de multilateralidade”.
 
O princípio de bilateralidade não foi declarado inconstitucional de seu, mas si submetido à interpretação do TC que fez dele uma pantomima de bilateralidade. Começa precisando o TC que não se trata das relações entre o Estado espanhol e a Generalitat de Catalunya, pois isso poderia dar a entender que são dous estados os que se relacionam, senão entre dous órgãos dum mesmo estado: a Generalitat e o Estado central; e tampouco se trata duma relação exclusiva, senão que tem que conciliar-se com outros marcos de relação. O princípio de bilateralidade –diz o TC- não pode entender-se como uma “dualidade impossível entre o Estado espanhol e a Comunidade Autônoma de Catalunya”, nem pode referir-se à “não menos inviável participação stricto sensu (ide est, determinante ou decisória) da Generalitat de Catalunya no exercício de competência alheias” por mais que estas afetem a Catalunya. As competências concernidas das que trata a Comissão Bilateral dos Governos de Espanha e a Generalitat de Catalunya “unicamente podem ser, em sentido estrito e em termos de cooperação voluntária, as correspondentes a um e outro Executivos cuja plenitude de exercício não pode ver-se condicionada nem limitada pola Comissão, ficando, ademais, naturalmente excluídas as que constitucional e estatutariamente correspondem a outros órgãos do Estado e da Generalitat, em particular, como é patente, as competências legislativas”. A participação do Governo da Generalitat cerca do Governo do Estado há limitar-se à típica faculdade e estímulo e incentivação do exercício duma determinada competência por quem é o seu exclusivo titular jurídico. Outras matérias importantes que foram recorridas ante o TC foram: a distribuição de competências entre Catalunya e o Estado, as relações internacionais de Catalunya e um sistema de financiamento próprio para Catalunya.
 
Os câmbios introduzidos pola sentença do TC, feita pública o 28/06/2010, foram qualitativamente muito importantes e desnaturalizam a natureza da reforma aprovada. O TC mantém nela uma filosofia de clara subordinação das competências e das decisões da autonomia de Catalunya a respeito do Governo central do Estado, igual que da sua língua a respeito da língua oficial do Estado. O leit motiv da sentença parece ser libertar o Governo central de qualquer atadura devido à existência e reforma do sistema autonômico. A autonomia é uma concessão da CE e o intérprete desta são sempre, indiretamente, os partidos de âmbito estatal por ser quem controlam a nomeação dos membros do TC. O povo de Catalunya respondeu a esta sentença com uma demonstração monstro em Barcelona o 10/07/2010 para amostrar o seu rejeitamento à sentença do TC e a favor da independência de Catalunya.
 
O resultado desta política do PP foi o seguinte: O Estatut aprovado polo povo de Catalunya em referendo foi anulado e o Estatut laminado polo TC não foi submetido à aprovação do povo catalão, como prescreve o mesmo Estatut para qualquer reforma. Do qual se segue que o povo catalão propriamente não tem um marco legal polo que reger-se. O sistema autonômico foi ferido de morte polas manobras de despacho dum partido que atacou uma reforma estatutária envolvendo-se na bandeira de Espanha para ganhar votos noutras partes do Estado e apelando ao cumprimento duma lei feita à sua medida, ao tempo que a conculca constantemente para atacar os adversários políticos e financiar-se irregularmente.

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