A eutanásia segundo a CEE

Li um artigo do meu amigo Torres Queiruga, titulado «A eutanasia, cuestión humana» e realmente fiquei surpreendido porque considerava que o seu pensamento se desmarcava do posicionamento da igreja oficial e que oferecia algo novo ao pensamento teológico galego atual, especialmente em temas muito próprios dos nossos tempos, como é o da eutanásia,mas fiquei decepcionado ao ver que coincide com o documento da Conferência Episcopal Espanhola «Semeadores de Esperança», ao que remite os leitores. O que vou dizer, portanto, refere-se tanto a um como à outra.

Por Ramón Varela | Ferrol | 20/02/2020

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Torres Queiruga cita a eito a frase «o que é bom para Ramón Sampedro é bom para Deus», mas que dito do sonense pareceria que implicava uma defesa da eutanásia, que é o que o marinho demandava; esta expressão se quer expressar algo distinto, só pode significar que o homem tem um rol na determinação dos valores, que o pensamento humano conta para Deus, ainda que isto tem por outra parte, umas consequências muito preocupantes porque levaria a ética polo caminho do relativismo individualista, totalmente oposto ao absolutismo que carateriza a ética cristã. Mas em vista da identificação de Queiruga com o pensamento oficial, essa expressão só pode significar uma mera tautologia segundo a qual o que é bom para Ramón Sampedro é bom para Deus, porque somente é bom para ele o que concorda com o critério de bondade de Deus.
 
Insistem tanto Torres Queiruga que a eutanásia é uma questão humana e isto dizem-no para desprender-se do tufinho religioso que não goza de predicamento na sociedade de hoje, precisamente polo descrédito experimentado polas práticas e polos posicionamentos teóricos dos seus teólogos e dos seus dirigentes. Eles intentam deixar claro que há uma dimensão humana prévia e mais fundamental que a religiosa, que é a humana e que, no tema da eutanásia se movem nesse terreno e não no religioso propriamente dito. O seu complexo religioso obedece a que historicamente conduziram a religião positiva polo caminho do absurdo e da sem razão. Muitos dos que não somos cristãos, mas sim religiosos, pensamos que Deus é o que vai conosco, pois como diziam os estoicos Cleantes e Arato, que Paulo cita em vão: em Deus vivemos, movemo-nos e estamos.
 
Insistem tanto Queiruga como a CEE que a eutanásia não é imediatamente um problema religioso, senão um problema moral, como se um problema religioso não fosse também um problema moral; e a CEE diz que se trata dum ato moral, mas moral é praticamente todo, salvo quiçá os atos insignificantes. Estas separações da realidade em compartimentos estancos separados podem ser úteis para uma análise da realidade, mas podem dificultar a sua compreensão se se crê que o que nós separamos com o pensamento, está separado na realidade. O que é curioso é que depois de sinalar que é um problema radicalmente humano e moral, não dêem nenhuma solução dentro desse âmbito no que dizem mover-se, e a sua alternativa reduz-se a pregoar as receitas católicas mais integristas. Se fossem capazes de fazê-lo sempre poderia dar-se uma certa aproximação com os demais setores sociais, mas não estão interessados nem quiçá preparados para mover-se nesse âmbito; em todo caso não o demonstram.
 
Depois de lançar-lhe pulhas a eito aos que não concordam com o seu discurso único, tanto Queiruga como a CEE pedem diálogo honesto, sossegado e construtivo, mas quando isto provém de pessoas ligados por dogmas inalteráveis um pode perguntar-se a onde conduz tal proposta de diálogo; aliás um pode perguntar-se que necessidade têm de novos ecos difusores do seu pensamento quando se trata duma instituição com meios de comunicação próprios, que nos obrigam a que lhos paguemos incluídos os que não concordamos com eles; com representantes indiretos no Parlamento, alguns que inclusive querem ressuscitar o nacional catolicismo, com o beneplácito público de hierarcas clericais; com classes de religião pagadas por todos os contribuintes, com as catequeses, o púlpito e o confessionário,... Um pode muito legitimamente pensar que o seu pensamento dispõe e meios de transmissão suficientes para ser transmitido à cidadania, e muito superiores aos que dispõem a grande maioria dos grupos sociais. Parece não obstante que isto não lhe abunda e que querem ter também diálogo direto com os governantes de turno, procurando desta maneira premer os poderes públicos para conseguir impor os seus critérios a toda a sociedade.
 
Quando não se quer aceitar a realidade social, que se pronuncia com a taxa dum 84 por cento em prol da legalização da eutanásia, e se parte da desqualificação da «morte digna», «autonomia», ou «libertação», humanas desprezando-as como eufemismos, o diálogo é mais difícil. Consideram que a autonomia do paciente não pode ser concebida como um absoluto, e, por conseguinte, a sua liberdade não pode ser desvinculada da verdade e o bem. Isto significa que para a CEE a verdade e o bem existem à margem dos seres concretos, numa espécie de mundo platônico e que servem de referência para qualificar a bondade ou malícia da conduta humana, tendo como intérpretes na terra os hierarcas religiosos. Outra maneira mais de desapoderar os seres humanos concretos. A autonomia, a partir de Kant, é considerada como um princípio reitor dos atos humanos individuais e dos povos, procurando ampliar o seu âmbito na medida em que o permite a situação concreta que nos toca viver e contribuindo de maneira notória à maioria de idade da razão e, consequentemente da humanidade. Não é surpreendente que a CEE negue tanto o poder de decisão dos indivíduos como dos povos, entre eles o poder de decisão sobre a própria vida, incluso quando já não é uma vida propriamente humana e qualificando de bem moral a união forçada dos povos de Espanha. Historicamente a repressão sobre os fieis chegou a tanto que os clérigos se consideraram com direito a decidir sobre a vida mais íntima dos indivíduos, prescrevendo como deviam fazer o amor ou limitando o prazer sexual ao seu bel prazer.
 
A dignidade humana pregoada pola CEE não pode consistir num vocábulo vazio de contido, senão que para que exista dignidade há que empoderar a cidadania para que possa tomar as decisões e assumir a responsabilidade sobre a sua conduta e a sua vida nos casos em que deixou de ser uma vida humana digna de tal nome; para que possa exercitar uma liberdade responsável sem estar mediatizada por instituições que os infantilizam atribuindo-se a monopolização da verdade, da interpretação da Bíblia, do sentido dos chamados dogmas revelados; da necessidade da graça para qualquer ato meritório e a incapacidade de obrar o bem; adjudicando-se o poder de perdoar os pecados, proclamando dogmas impermeáveis à razão e a toda cordura como o do pecado original, intitulando como infalíveis em temas de fé e costumes os seus hierarcas máximos apesar das contradições entre eles, de atribuir-se poderes para submeter povos inteiros à escravidão, como fez Nicolau V, fomentar as cruzadas, estabelecer a inquisição, etc. Concordo com a CEE em que não temos direito a dispor arbitrariamente da própria vida, mas tampouco outros tem direito a pôr-nos corpetes irrazoáveis e arbitrários desde os seus preconceitos de grupo e de conceiç4oes ultrapassadas. 

Ramón Sampedro
Ramón Sampedro | Fonte: X.M. Albán
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Ramón Varela Ramón Varela trabalhou 7 anos na empresa privada e, a seguir, sacou as oposições de agregado e catedrático de Filosofia de Bacharelato, que lhe permitiu trabalhar no ensino durante perto de 36 anos.