Existe uma Ética cristã?

Na última legislatura de Zapatero, a Igreja desatou uma campanha mui agressiva contra a matéria Educação para a cidadania e os direitos humanos, quiçá mesmo financiada com o dinheiro de todos e cada um dos contribuintes, que nos surpreendeu enormemente aos que ensinávamos esta matéria, pois dava a impressão de que, tal como Sócrates, nos dedicávamos a corromper a juventude. Isto atribuísse por parte dos mídia a que a Igreja quer seguir monopolizando a ideologia dos cidadãos e, por tanto, ostentar o controle das consciências. Mas um dos temas que há que debater é se o cristianismo tem uma ética própria, e, em segundo lugar, se é uma ética apta para os nossos tempos.

Por Ramón Varela | Ferrol | 06/04/2016

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Em primeiro lugar, temos que precisar que se entende por ética e a sua distinção a respeito da moral. Começando por esta, podemos dizer que a moral é um código de conduta vigente numa determinada comunidade. Assim, na comunidade galega existe uma percepção do que está bem e deve, por conseguinte, fazer-se, e do que está mal, e deve, conseqüentemente evitar-se; e isto independentemente de que por vezes se faça ou não. Todos, independentemente de que fique recolhido ou não na legislação, louvamos e consideramos que obrou bem uma pessoa que socorreu a outra em caso de necessidade, como pode ser um acidente, um ataque súbito,... Todos criticamos a quem golpeou a outro, a quem violou a outro, seja home ou mulher, e inclusive no matrimônio,... A ética é uma reflexão teórica sobre a moral que pretende explicitar que significa «bom», «mau», «correto», «incorreto»,... e oferecer uns princípios dos que podamos derivar e que nos permitam justificar os preceitos morais, por exemplo: Por que está bem ajudar a outro? Por que não se pode violar uma mulher? Por que devemos respeitar os homo-sexuais?... Os citados princípios devem ser claros e coerentes entre si, quer dizer, que não se contradigam mutuamente, e devem servir para extrair todos os preceitos concretos. O que não vale é acudir a um determinado princípio para condenar a homo-sexualidade e a outro antitético e incompatível com o anterior para explicar o celibato.

A mensagem do cristianismo está na Bíblia, que concorda basicamente com o Judaísmo e islamismo pelo que diz respeito ao Antigo Testamento e que contém como próprio e específico o que se narra no Novo Testamento. Dos evangelhos é praticamente impossível extrair uns preceitos morais para regular as consciências numa determinada coletividade. A ver quem aceita o preceito de Jesus de que não nos preocupemos pelo que imos comer ou vestir? Uns pais de família que obrassem assim, mais bem diríamos que carecem de responsabilidade, e, por tanto, atuam imoralmente. Quem tome como modelo de conduta as relações de escravidão ou a prática da castração, seria fortemente doestado pela opinião pública.  Os apóstolos defenderam a escravidão, a desigualdade entre os sexos: mulieres in ecclesia taceant, as mulheres na Igreja que calem, dizia São Paulo, apóstolo que enviou para o inferno de cabeça aos homo-sexuais.  

Que princípios éticos utiliza o cristianismo? Para condenar as práticas da homo-sexualidade e incesto utiliza o princípio de que se opõem á natureza humana e que inclusive são rejeitadas pelos animais. Nestas justificações incorre no erro de derivar o moral do natural, os preceitos dos factos, incorrendo assim na falácia naturalista, um argumento falaz que consiste na derivação do que «deve ser» a partir do que «é». A natureza nunca pode servir de padrão de conduta moral, é totalmente indiferente aos princípios morais, pois a moralidade é algo que o home acrescenta sobre a natureza. Pela contra, para defender a superioridade da virgindade sobre o matrimônio, o celibato, a mortificação, os castigos cruéis e inumanos, a superioridade do home sobre a mulher, etc. acode a princípios tirados de textos bíblicos as mais das vezes de caráter mítico ou ás leis civis. Dizia Santo Agostinho: “quando vemos que o corpo dum ladrão cruelíssimo vai acabando lentamente no suplício, aprovamos esta disposição das leis” (Do livre alvedrio, 3,9,28).

Pelo que diz respeito ás homo-sexualidade, p cristianismo opõe-se argumentando que o comportamento homo-sexual vai contra a natureza, mas isto é infirmado pelo facto de que em muitas espécies do reino animal se acharam condutas homo-sexuais, tanto gays como lesbianas: libelinha, pombos, pato selvagem, cisnes negros, pingüim, abutres, doninhas, cães, leões, carneiros, bisontes, macaco japonês, bonobos, praticamente todos os grandes símios e outras espécies de primatas, golfinhos, elefantes, hiena, girafa, lagartixa,... Isto levou a que alguns autores afirmem que “Não existem espécies para as que não se encontraram comportamentos homo-sexuais, com exceção das espécies que nunca têm sexo, como os ouriços marinhos e os áfidos. Ademais, uma parte do reino animal é hermafrodita, realmente bi-sexual. Para eles, a homo-sexualidade não é um problema” (Wikipedia, «1,500 Animal Species Practice Homosexuality». News-medical.net, 2006-10-23). É digna de menção especial a conduta homo-sexual dos bonobos, que praticam sexo tanto homo-sexual como hetero-sexual, sendo especialmente freqüente o lesbianismo, que representa o 60 por cento da conduta sexual das fêmeas. Apresentar-se-ia, por outra parte, outra objeção importante para os que combatem a homo-sexualidade, se se chega a demonstrar que a homo-sexualidade tem raízes genéticas, porque neste caso estariam condenando a mesma natureza criada por Deus. A ver quem ressarce depois ás vítimas da perseguição eclesial!

Outras vezes recorre á glória de Deus e á salvação das almas. A mais brutal inquisição e genocídio de povos que conheceram a humanidade desencadeou-se pelo tandem a espada e cruz, para salvar as almas dos pretensamente dissidentes. Mas, em que fundamentam a autoridade para decidir da salvação dos demais? Neste caso, o princípio utilizado é o da sua seleção por Deus para dirigir os destinos da Igreja, porque expressões como «todo o que atareis na terra será atado no céu» chega para desencadear a mais brutal repressão dos demais, para saciar as tendências agressivas dos seus autores, e, por acima, fazê-lo com boa consciência e em benefício de Deus e da própria vítima. Isto permite-lhe alcançar o céu e beneficiar com este prêmio á própria vítima. Muitas vezes esta pretendida eleição por Deus fez-lhe perder o sentido da realidade aos seus hierarcas. Isto foi o que aconteceu quando opapa Nicolau V promulgou a bula Dum diversas, o 18/06/1452, pela que autorizava o rei Afonso V de Portugal a reduzir os muçulmanos (sarracenos), pagãos e os outros incrédulos a escravidão perpétua, naturalmente a após expressar a sua habitual queixa contra os inimigos da fé, que buscam eliminar a religião cristã, e declarar que o faz inflamado pelo ardor da fé e fortificado com o amor divino Dizia o científico alemão Bondi que “o poder desapiedado exercido pela igreja e outras instituições religiosas ao longo dos séculos situa a estar organizações na bancarrota moral” (DAVIES, PAUL, Dios y la nueva física, p. 5). Escreveu este físico que “em grande parte da Europa cristã o temor de Deus usou-se para queimar anciãs acusadas de bruxaria, um árduo dever que parecia vir imposto claramente pela Bíblia. Os factos sobre a queima de bruxas são suficientemente explícitos. Em primeiro lugar, a fé fez cometer a pessoas decentes atos de crueldade arrepiante, amostrando como os sentimentos humanos naturais de bondade e repulsão ante a crueldade podem ser e foram anulados pelas crenças religiosas. Em segundo lugar, demonstra que é completamente falsa a afirmação de a a religião tem uma base moral absoluta e imutável”.

Noutros casos recorre ao escândalo, que foi o que moveu a muitos hierarcas eclesiais para não delatar aos que incorrem em delitos de pederastia, pedofilia, seqüestro ou retenção de pessoas. Tanto a justificação exposta no apartado anterior como neste, baseiam-se no mais grosseiro conseqüencialismo, quer dizer que são as conseqüências as que determinam a moralidade das ações, que se opõe a outro princípio freqüentemente propalado pelos moralistas cristãos que diz que «o fim não justifica os meios».

Noutras ocasiões, a justificação utilizada é a filosofia de Platão e principalmente Aristóteles, como no caso da justificação da escravidão por parte de São Tomás de Aquino, quem, ainda no século XIII, sustinha que a escravidão é de direito natural pela razão de utilidade que se deriva para o Senhor e porque é útil para o escravo reger-se por quem é mais sábio que ele e para o Senhor ser ajudado por servos (1-2, q 94 a. 5 ad 3; 2-2 q. 57 a. 3 ad 2). Já dizia Orígenes que Celso “Se pôs a contestar a nossa moral, sustendo que os preceitos que dá não tem nada de singular nem de novo, e que não seja comum com todos os das outras filosofia” (Contra Celso, 1,4). Por conseguinte, Celso considerava que o cristianismo não tinha uma moral própria, senão que coincide com as dos filósofos, mas eu diria que não é inteiramente correto, porque também foi extraída em grande parte dos textos míticos.

Entendemos que uma instituição que não tem princípios éticos coerentes, que defendeu e praticou a escravidão de pessoas, a castração pelo reino dos céus, que defendeu a desigualdade de gêneros apresentando-a como de direito divino para favorecer a sua perduração a través do tempo, que condena ao inferno aos que tem inclinações sexuais diferentes, que sumiu a humanidade na maior repressão conhecida, que condenou praticamente todos os direitos humanos quando se promulgaram..., não é capaz de sintonizar com a cidadania e é impossível que poda ser considerada como modelo moral para a sociedade dos nossos dias. Temos que ir a uma ética laica, baseada nas necessidades e aspirações humanas a um futuro melhor, mais livre, fraterno e igualitário no que as exigências básicas de todos a uma vida digna se vejam satisfeitas, porque toda ética deve focar-se para a superação das privações e a consecução da felicidade dos seres humanos em vez da felicidades de ultra-tomba. Este modelo somente pode ser desenvolvido a partir do intercâmbio de opiniões e aspirações e propostas dos diversos indivíduos e dos distintos povos. Creio que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi um bem início nesta longa andadura que nos fica por recorrer para dar-lhe a humanidade um novo marco de direitos e liberdades de caráter universal, que tenha em conta também os restantes animais, vegetais e o meio ambiente; a nova ética tem que ser uma ética profundamente ecológica e orientada a procurar a sustentabilidade das condições de vida digna no nosso planeta.  

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