Extra ecclesiam plena salus

O papa Francisco é uma boa pessoa, mas o pobre pode fazer o que pode fazer porque entre os dogmas inalteráveis, perenes e imutáveis e os seus confidentes ultra-arcaicos vê-se totalmente impotente para mudar as cousas qualitativamente e limita-se a gestos sugestivos, com pouca virtualidade para cambiar as estruturas da Igreja, por mais que algumas vezes não deixe de surpreender-nos positivamente. Ao ritmo que vai dentro de cinquenta anos pode que já coincidamos, ainda que não possamos ter consciência dessa concordância.

Por Ramón Varela | Ferrol | 18/05/2018

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A mediados do mês de abril consolou a um menino, de nome Emanuel, que lhe perguntou se o seu pai que era ateu e morreu faz pouco estaria ou não no céu, dizendo-lhe que Deus não abandona às pessoas boas. Eis o que eu já pensava quando tinha vinte e quatro anos aproximadamente, se bem, como. não era clérigo mais que em projeto, somente afirmava que “Deus, se existe, nunca pode abandonar a uma pessoa que é boa e obra corretamente”.
 
Passaram já desde então muito tempo na perspectiva humana, e agora já não podo crer no Deus no que daquela creia e que não se diferenciava muito do Deus do papa Francisco. Considero o Deus bíblico judeu-cristão como um Deus tribal, zeloso, guerreiro, justiceiro, vingativo e intransigente; uma divindade que mudou no cristianismo num deus uno e trino, um absurdo lógico e metafísico, que foi  asseteado sem trégua polos dardos dos teóricos filhos seus até a situação agônica em que agora se topa. Este Deus, como dizia Nietzsche, morreu e somos nós quem lhe demos morte, assassinos entre os assassinos, mas ainda sobrevive fossilizado em certos sectores atrasados da sociedade.
 
Deus, como dizia Schleiermacher não é mais que uma criatura humana que encarna em si todo o que o home de cada momento histórico considera o melhor e o mais sublime e excelso. Para um home duma sociedade tribal, o seu deus será também um representante dos melhores valores tribais; para um membro duma sociedade guerreia, o seu deus vai ser um deus guerreiro; para um membro duma sociedade escravista, o seu deus defenderá a escravidão. Por conseguinte, a criatura humana, chamada deus, que cria o home hoje tem que ser distinta e estar livre de toda uma série de conotações arcaicas. Eis a razão pola que o meu deus não pode concordar com o duma sociedade de faz quatro mil anos, um deus retrógrado e obsoleto, um fóssil vivente, que não me entenderia.
 
O papa Francisco louvou Emanuel e o seu pai dizendo: "Que bonito que um filho diga que o seu papá era bom. Um bonito testemunho de aquele home para que os seus filhos possam dizer de ele que era um home bom. Se esse home foi capaz de ter filhos assim, é verdade que era um grande home". Bonito louvor o de Francisco, se bem eu precisaria que um home é bom polas suas obras retas e não pola procriação dos seus filhos, porque a bondade ou malícia humana, enquanto valor moral dos atos humanos, não se transmite de pais a filhos, porque não estão enraizados nos genes. Seguramente o papa Francisco conhece muitos clérigos que tiveram uuns pais de conduta nada edificante.
 
O seu louvor da bondade dum home ateu suscita o interrogante de para que serve a religião. Os adeptos a religiões são mais cumpridores e de maior elevação moral que os que se declaram ateus ou agnósticos? É uma constatação empírica que os homes de esquerda se confessam em maior medida ateus ou agnósticos e os de direita mais crentes, mas todo indica que o valor da conduta moral dos humanos de direita não ultrapassa o valor da conduta moral dos humanos de esquerda. Se nos cingimos ao âmbito político, parece que é ao revés. Observamos grosso modo uma maior corrupção e maior belicosidade e uma menor solidariedade nos home de direita que nos de esquerda. Todo dá a entender que os políticos e os militantes de esquerda têm uma ética superior aos da direita, e se isso é assim, podemos perguntar-nos: para que serve a religião se não contribui a fazer melhores as pessoas? Um fator causal importante no declínio moral dos crentes cristãos é o adormecimento da consciência moral provocada pola absurda teoria de que basta com confessar os pecados a um clérigo, ainda que seja tanto ou mais criminal como o penitente, para que este fique limpo e possa tomar possessão da poltrona que lhe permitirá ser feliz contemplando o ser divino no céu por muito criminoso que tivesse na véspera da sua morte. Como dizia um clérigo italiano pilhado in fraganti num prostíbulo: “Peco, mas logo confesso-me”. A utilização fraudulenta da confissão deveria ser motivo suficiente para eliminá-la duma vez, e se sobrevive é unicamente polo anseio do clericato de não perder o controle das consciências que historicamente se fez desde o confessionário, que lhe proporcionou pingues benefícios econômicos.
 
Ora bem, o que não explicita Francisco é como concilia a sua afirmação de que Deus não abandona as pessoas boas com o reiterado e solene pronunciamento eclesiástico de que extra ecclesiam nulla salus (Fora da igreja nenhuma salvação), que é considerado, em consequência, como um dogma de fé. Somente a título indicativo, imos expor algumas destas manifestações.
O VI Concílio de Toledo de 638, D. 493, disse: “Com esta fé os corações são purificados (cf. Act 15, 9), com esta as heresias são extirpadas, nesta toda igreja colocada já no reino celeste e vivendo no século presente se gloria, e não existe salvação noutra fé: «nem se lhe deu outro nome aos homes sob o céu, no que seja necessário ser salvos» (Act 4,12)”. O papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam de 18/11/1302, D. 870, declara: “Estamos obrigados a crer e suster pola fé premente uma santa igreja católica e apostólica e nós cremos firmemente e simplesmente confessamos, que fora dela não existe salvação nem remissão dos pecados”.
No IV Concílio de Latrão, dozeno concílio ecumênico, D. 802) definiu-se: “Uma em verdade é a igreja universal dos fiéis, fora da qual ninguém em absoluto se salva”. Os pronunciamentos tanto papais como conciliares continuaram até o século XX. O concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática Lumen Gentium, 14, declarou que Cristo “confirmou a um tempo a necessidade da Igreja, na que os homes entram polo batismo como porta obrigada. Polo qual não poderiam salvar-se quem, sabendo que a Igreja Católica foi instituída por Jesus Cristo como necessária, recusaram entrar ou não quiseram permanecer nela”. Todos estes pronunciamentos têm como objetivo apresentar a igreja católica como imprescindível e necessária, e irão acompanhados de ameaças de condenas eternas por Jofre fervendo a quem não entre na igreja ou ouse sair.
O posicionamento do papa Francisco é mais racional e mais sensata que a expressada reiteradamente pola igreja, se bem tem que pagar o preço para a instituição de que já não poderá suster o lema “extra ecclesiam nulla salus”, senão que deve mudá-lo polo de “Extra ecclesiam plena salus”, e, portanto, reconhecer que os homes podem salvar-se igualmente ainda que militem noutra religião, não militem em nenhuma ou se declarem abertamente ateus. As obras são as que salvam e não a militância numa ou outra organização. Para que se imponha o posicionamento de Francisco no seio da igreja, hoje impossível, tem que acompanhar-se duma reinterpretação histórica tanto das Escrituras como dos dogmas, na que se considerem estes como posicionamentos dum determinado momento histórico que nascem e morrem como expressões duma determinada sensibilidade religiosa e moral, e, ao cambiar esta, os dogmas também têm que cambiar necessariamente. Só desta maneira se logrará uma sintonia entre a Igreja e a sociedade que converterá a igreja numa instituição útil para as pessoas e para a sociedade, deixando de ser esse cadáver elefantino que permanece em pé durante um tempo depois de morto, que cumpre arrumar porque pronto fede e já não serve para nada.  

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