Sobre o feitiço do fetichismo (I)

Algumhas categorias das ciências sociais, por causa do sua vulgarizaçom no discurso de certa esquerda, som vistas como apoios discursivos sem conteúdo real, que pouco acrescentam sobre aquilo que se queria transmitir... isso quando realmente se quer transmitir algumha cousa.

Por Maurício Castro | Ferrol | 09/07/2016

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Umha delas é o adjetivo “dialético”. Afirmar que um conflito ou um assunto qualquer, ou simplesmente a realidade, é “dialética” parece poupar já qualquer análise concreta sobre o que nom passa de umha referência abstrata e, como tal, carente das determinaçons e mediaçons que lhe dariam um poder explicativo real. Quem de nós nom ouviu afirmar em tom sentencioso que tal explicaçom é “pouco dialética”, ou que estamos diante de um “ponto de vista dialético”, assim, sem maiores esclarecimentos? E quem se atreve a contestar tais afirmaçons sem medo a ser riscado de ignorante, ou, pior ainda, “antidialético”?

Outra dessas categorias, bastante usada e nem sempre compreendida, é a de “fetiche” ou “fetichismo”. Para além da sua aceçom sexual, o seu uso nas ciências sociais e, concretamente, na política do dia-a-dia, costuma referir atitudes idealistas de sublimaçom do realidades às quais se atribuem poderes que realmente nom tenhem. É o caso do “fetiche constitucional”, o “fetiche do consenso”, ou o “fetiche do crescimento económico”, para só dar três exemplos retirados da imprensa dos nossos dias.

É interessante comentarmos brevemente a história da palavra, a categoria científica a que deu lugar e a utilidade que o seu uso concreto pode ter na Galiza de hoje.

Comecemos por lembrar que 'fetiche' é a adaptaçom francesa de umha palavra galega posta em circulaçom polos navegadores portugueses para referir os poderes mágicos atribuídos a certos objetos de culto nas culturas africanas. Sim, referimo-nos ao vocábulo 'feitiço', bem vivo ainda nos países de fala galego-luso-brasileira e que também no seu país de origem, na Galiza, estava ligado a formas de culto animista que, de certa forma, ainda subsistem na nossa cultura ancestral.

Terá sido no século XVIII quando um iluminista francês, Charles de Brosses, acunhou o conceito teórico 'fetiche', estendendo-se por todo o mundo como galicismo que por sua vez tinha derivado de um lusismo que era originariamente galego (o nosso 'feitiço'). O grande dicionário brasileiro Houaiss regista 1858 como data de entrada da adaptaçom gala 'fetichismo' de volta à nossa língua.

Para além da semántica sexual, proposta pola psicologia, interessa aqui comentarmos a categoria adotada por Karl Marx logo no início da sua principal obra, O Capital, por ser ela a que chegou até os nossos dias. Ela resulta de um desdobramento das teorias da alienaçom de Hegel, de Feuerbach e do próprio Marx. No primeiro desses autores, em relaçom à natureza; no segundo, à religiom; e no terceiro, à mercadoria, célula da sociabilidade capitalista que com tanta genialidade como precisom analisou o barbudo alemám.

Com efeito, a conclusom que tiramos do estudo histórico da categoria 'alienaçom' do materialista dialético Karl Marx é o seu caráter social e histórico, com diferente forma segundo o modo de produçom e as relaçons sociais dominantes em cada etapa, sendo o 'fetichismo' umha das suas concreçons particulares no modo de produçom capitalista.

Quando Marx apresenta, logo no primeiro capítulo da sua monumental obra, O Capital, “o fetichismo da mercadoria e o seu segredo”, ele situa o surgimento do 'fetichismo' contemporáneo na passagem da dimensom utilitária dos produtos (o valor de uso) para a dimensom mercantil-capitalista da mercadoria (o valor de troca). Estamos, portanto, na raiz económica que define esse modo de produçom.


É assim que as relaçons sociais entre as pessoas passam a ser realizadas de maneira indireta, através das cousas (mercadorias), no mercado, passando os produtos do trabalho a se constituírem em sujeitos que 'alienam' os seus produtores e produtoras, resultado do que podemos denominar 'inversom fetichista'.

O resultado vê-se facilmente só com olhar para as seçons de economia nos jornais e telejornais, que nos falam do “estado de ánimo” e do “nervosismo” dos mercados, atribuindo caraterísticas próprias das pessoas às formas económicas que dominam a economia de mercado, como se ela nom fosse um produto humano e aparecendo como um ser superior que chega a dominar o seu criador. As mesmas personificaçons servem para “explicar” a situaçom de crise económica no ámbito nacional, internacional e até mundial. Eis o nível da dita “ciência económica” imperante nos nossos dias.

O fetichismo fai-nos assistir, desse modo, à conversom do objeto social em sujeito com vida própria que nos submete. O mesmo acontece na relaçom diária do produtor com a mercadoria produzida. O próprio Marx, admirador de Goethe, exemplificara já no Manifesto Comunista o fenómeno, fazendo referência à relaçom do feiticeiro com as forças mágicas que invocou, em referência à história do 'Aprendiz de feiticeiro'

1.As relaçons burguesas de produçom e de intercámbio, as relaçons de propriedade burguesas, a sociedade burguesa moderna que desencadeou meios tam poderosos de produçom e de intercámbio, assemelha-se ao feiticeiro que já nom consegue dominar as forças subterráneas que invocara”. Manifesto do Partido Comunista, 1848

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Mauricio Castro Maurício Castro nasceu en Ferrol en 1970. Licenciado em Filologia Galego-Portuguesa pola Universidade de Compostela, dedica-se profissionalmente à docência de Português. É autor de diferentes ensaios, sobretodo de temática lingüística e sociolingüística, como a História da Galiza em Banda Desenhada (1995), Manual de Iniciaçom à Língua Galega (1998), Galiza e a diversidade lingüística no mundo (2001), o Manual Galego de Língua e Estilo (2007) ou Galiza vencerá! (2009). Primeiro presidente da Fundaçom Artábria.