Golpe de Estado independentista

Toda comunidade, seja democrática ou autoritária, rege-se por umas normas jurídicas, quer legislativas quer consuetudinárias, que constituem o seu estado de direito, e sem o qual a sociedade não pode funcionar.

Por Ramón Varela | Ferrol | 13/06/2019

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Este estado de direito existiu em todas as sociedades anteriores, mas agora alguns querem consubstancializar estado de direito com a democracia, que, na sua modalidade de democracia liberal, só começou a implantar-se, como forma de governo, no século XX, e tem um significado completamente distinto ao de estado de direito. Querer identificá-los é indicativo dum déficit democrático importante em quem o faz. Os que defendem esta alternativa teriam que suster que no Império Romano ou na Espanha em tempos de Carlos V ou de Carlos III  não havia estado de direito.
 
As normas sempre são impostas polos que têm o poder e o controlo da sociedade e estes podem ser elegidos pola cidadania ou podem alçar-se com o poder pola tradição, por uma sublevação militar, polo carisma dalgum dirigente, etc. O estado de direito concretiza-se, nos Estados modernos, na constituição e nas leis, que expressam um sistema de valores que se querem implantar a nível social. Nos nossos dias, o sistema de valores mais relevante é o que se recolhe nos pactos e tratados internacionais referentes aos direitos humanos. A legislação não se restringe à que aprova o parlamento estatal, senão que compreende também os tratados internacionais que os mandatários dum país assinaram e assumiram como próprios. Entre os tratados relativos aos direitos coletivos estão: O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Tratado Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que formam parte da legislação espanhola e ambos consagram o direito de autodeterminação dos povos. O desprezo pola legislação internacional e polos seus representantes por parte dos dirigentes do Estado espanhol foi posto em evidência pola negativa do governo de Sánchez a libertar de imediato os presos políticos preventivos como lhe exigiu o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias da ONU por considerar que a sua detenção é arbitrária; em vez de fazer-lhe caso, dedicou-se a insultá-los acusando-os de conflito de interesses e de ignorância do problema catalão, e incluso se atreveu a pedir a recusação dalguns dos seus membros. Mas foi desautorizado o dia 6/06/2019, polo Tribunal Europeu de Direitos Humanos que reconheceu o citado Grupo de Trabalho como um referente e assumiu os seus critérios como «instância internacional», à que se pode recorrer.
 
A nível do Estado espanhol a política que se seguiu historicamente polos unionistas consistiu em impossibilitar a toda custa o exercício dos direitos coletivos e fomentar a animosidade da cidadania contra os que defendem o direito de autodeterminação dos povos ou simplesmente uma remodelação do Estado espanhol em clave federal, atitude que se complementa com a denigração com grossos qualificativos do independentismo, comparando-o com o golpismo, nazismo,... animosidade que explica a autocensura e auto-limitação nas suas propostas de autores como Alfredo Branhas, que rebaixa as pretensões de Galiza para evitar qualquer suspeita de radicalidade e as correspondentes acusações dos unionistas. A propagação desta animadversão contra os nacionalistas e independentistas, que se manifesta em expressões como «a por eles», no flamejar patrioteiro de bandeiras e no clima asfixiante do discurso único unionista, foi de par com a oposição a qualquer medida que possa entender-se como uma concessão às legítimas demandas dos povos. O estado espanhol esteve dominado pola «Santa» Inquisição até 1834 e isso cria caráter, no caso que nos ocupa, em contra duma política de diálogo e de negociação política dos problemas políticos. Um inquisidor pode ser laico, mas não por isso é menos inquisidor. A situação não tem visos de melhorar, senão que tende a empiorar com a entrada na cena política de atores como C’s e Vox, que identificam o bom espanhol com o intransigente em temas de política territorial principalmente e em ondear aos quatro ventos a bandeira da nação espanhola.
 
O clima sociopolítico rareou-se tanto que apesar de que o Estado espanhol tem um dos códigos penais com sanções mais elevadas, consideram que as penas não são suficientes para afogar o nacionalismo e propõem agora complementá-las com medidas políticas que os excluam do Congresso dos Deputados para minimizar a sua capacidade de influência na vida política espanhola. Os «maus espanhóis», dizem, não devem decidir nos problemas de Espanha e, entre os «maus espanhóis», incluem, naturalmente, os habitantes mais conscientes politicamente dos povos diferenciados que são os «manipuladores» dos povos malditos. Frente a estes alçam-se os «bons espanhóis», que se auto-proclamam como constitucionalistas, e que não são outra cousa que imobilistas a respeito da «Constituição espanhola» de 1978, concebido como um código fechado que todos devemos venerar.
 
No juízo ao process catalão, os juízes, em vez de ajuizar uns factos, inventaram um relato com a suposta finalidade de impor um castigo exemplar que sirva de escarmento a todos os demais povos do Estado para que ninguém ouse no futuro pôr em questão a «sagrada unidade da pátria», mas o problema não fica aqui senão que também se quer enturvar o relato com acusações de golpistas aos políticos independentistas, além do de rebeldes. O artigo 472 do Código Penal estabelece que são réus dos delito de rebelião os que se alçarem violenta e publicamente para declarar a independência duma parte do território nacional. Tem que haver, por conseguinte intencionalidade de derrubar a ordem estabelecida e violência apropriada para conseguir o seu fim, e não vale que algum indivíduo ou grupo de participantes coaja um polícia numa manifestação, como pudo ter passado em Catalunha. Por outra parte, quem estão acusados de rebelião são os dirigentes políticos catalães e não os participantes em eventuais algaravias. Imaginemos que algum indivíduos ou grupo de participantes nos atos do 1O desejasse derrubar o ordenamento constitucional espanhol, disso não se pode concluir que os culpáveis são os dirigentes que o único que fizeram foi convidar a votar, se não existem provas a este respeito. Aliás, em todo governo democrático, o princípio de mando é ostentado polo presidente, que é o responsável das ações de governo, mas, neste caso, como o presidente está exilado, carrega-se a culpabilidade máxima no vice-presidente, utilizado como um bode expiatório.
 
Como a acusação de rebelião não se ajusta aos factos do 1O pretende-se magnificar o relato perante a cidadania com declarações de que esse dia se produziu um golpe de estado, mas esta figura, além de ser falsa, não está incluída no código penal e como tal não é sancionável. Segundo a ERA o característico dum golpe de estado é que se imponha pola força um câmbio de governo, mas como nada disso se acha no acontecido o 1O, para fazer mais crível esta acusação, o fiscal e a acusação particular do process dizem que foi um golpe de estado keynesiano, expressão que deve este nome ao filósofo e jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973). Para Kelsen, uma revolução ou golpe de estado “dá-se quando a ordem jurídica duma comunidade é anulada e substituída de forma ilegítima por uma nova ordem”. Esta anulação ou substituição “é toda modificação, câmbio ou substituição da constituição que não se produz seguindo o disposto pola constituição em vigor”. Ora bem, se isto é assim os máximos culpáveis de dar golpes de estado são os que ostentam o poder, e, por citar um exemplo, o próprio Rajoy e o Tribunal Constitucional o teria dado quando decidiram invalidar o sistema de estatutos de autonomia que prevêem que, para que sejam válidos, qualquer modificação tem que ser referendada polo povo afetado, e isto não se cumpre no estatuto catalão, uma vez modificado polo Tribunal Constitucional.
 
Estas bravatas de golpismo surtem o seu efeito psicológico numa comunidade que foi traumatizado historicamente polas frequentes intervenções militares para alterar o normal desenvolvimento do devir político quando não coincidia com o seu modo de pensar ou com os seus interesses estamentais. A intervenção do exército na vida pública em 1923, 1936 e 1981 sim que foram autênticos golpes de Estado, mas que tem que ver com isto fomentar que os cidadãos votem pacificamente, livremente para decidir o seu futuro como povo?

Barcelona, na decisiva xornada de eleccións autonómicas en Cataluña, o 21 de decembro de 2017, trala declaración de independencia e a aplicación do artigo 155 da Constitución
Barcelona, na decisiva xornada de eleccións autonómicas en Cataluña, o 21 de decembro de 2017, trala declaración de independencia e a aplicación do artigo 155 da Constitución | Fonte: Miguel Núñez
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Ramón Varela Ramón Varela trabalhou 7 anos na empresa privada e, a seguir, sacou as oposições de agregado e catedrático de Filosofia de Bacharelato, que lhe permitiu trabalhar no ensino durante perto de 36 anos.