A era das ONGs

1. Escuito na rádio que o governo de umha importante cidade galega, em maos da esquerda institucional, desenvolve um plano para progressivamente retirar entre 30 e 35 pessoas sem-teito das ruas da zona velha, tentando a sua reintegraçom social a partir de apartamentos de aluguer pagos pola própria cámara. O programa desenvolve-se através de duas ONGs, umha das quais estimava recentemente que em Compostela haveria umhas 200 pessoas sem-teito. O financiamento público do plano será de 135 mil euros.

Por Maurício Castro | Ferrol | 24/10/2016

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2. Noutra cidade galega, os pais de umha criança com necessidades especiais pagam umha escolaridade compartilhada privada disponibilizada pola correspondente associaçom de pais e maes cujos filhos tenhem o mesmo problema. O motivo? A educaçom pública nom é tam universal assim e nom atende devidamente às necessidades de jovens e crianças afetadas. De facto, a grande maioria fica sem o atendimento nem os cuidados devidos, pola impossibilidade de os pais e maes assumirem os custos da escolaridade privada alternativa.
 
3. Também no nosso país, num centro público de ensino premiado pola qualidade dos serviços oferecidos pola sua biblioteca, chegou-se nos últimos anos a um ultimato por parte da administraçom autonómica: a supressom de horários para o atendimento profissional desse serviço obriga a fechar a instalaçom ou, como alternativa, deverá promover-se o “voluntariado”. A ideia, finalmente assumida polo centro, é que seja o alunado do mesmo que atenda, de maneira amadora e sem qualquer remuneraçom, a biblioteca, para que assim o serviço poda ser mantido.
 
4. Mais um exemplo. Nas AMPAs de centros de ensino público debate-se a conveniência de elas continuarem a assumir a gestom de refeitórios para crianças nos centros, umha responsabilidade que em princípio deveria corresponder às instituiçons educativas.
 
5. Comprovo também nestes dias que umha multinacional comercial chamada Carrefur mantém ativa umha campanha de “recolha de material escolar para crianças em risco de exclusom social”. 
 
Outros muitos episódios similares podem ser apresentados por qualquer de nós: agrupaçons religiosas a angariar e repartir roupas a pessoas pobres, coletivos de pessoas afetadas por doenças raras organizando atividades terapêuticas e de integraçom, entidades de apoio a pessoas imigrantes organizando o apoio material… Todos eles tenhem em comum a abordagem de carências concretas e graves na cobertura social a setores crescentes da populaçom.
 
Nalguns casos, entidades com fins lucrativos de tipo empresarial ou religioso aproveitam a situaçom de emergência social para promocionarem a própria imagem; noutros, som os setores afetados que se veem obrigados a criar organismos com que afrontar um abandono quase total por parte das supostas “instituiçons representativas”.
 
Como pano de fundo, assistimos ao recuo do Estado enquanto garante de todo o tipo de cobertura que lhe tinham sido historicamente atribuídas polo capital para que garantisse a reproduçom da mais prezada mercadoria: a força de trabalho. Saúde, educaçom e outros serviços básicos ficárom durante décadas por conta do aparelho estatal –a partir dos descontos nos rendimentos da classe trabalhadora e da burguesia–, com o fim último de manter a mao de obra disponível e em boas condiçons de reproduçom para o mercado. Um processo histórico em que a luita da própria classe operária conseguiu estender esses serviços a outros setores especialmente vulneráveis, como as pessoas com doenças crónicas, idosas ou com outras muitas limitaçons físicas ou psíquicas.
 
Porém, há já uns anos que assistimos à massiva deslocalizaçom de atividades produtivas para áreas do planeta de maior lucratividade, por causa dos baixos salários e, em geral, do custo menor da força de trabalho: China, Vietname, Índia… caindo a atividade produtiva de valor na Europa e aumentando o exército industrial de reserva (desemprego). Esse fator, tam útil para baixar os salários de quem ainda trabalha, junto a outros como a mecanizaçom dos processos produtivos, tem feito aumentar a populaçom sobrante, diretamente inservível para o capital. Nessa categoria entram setores que nunca trabalhárom e/ou nom vam trabalhar, massas precarizadas ou empobrecidas, sem-teito, imigrantes, refugiadas, pessoas idosas ou dependentes por múltiplas causas...
 
É aí que entra em cena o novo rol do Estado e a reduçom do investimento em saúde, educaçom e outros serviços públicos. De umha parte, o capital nom precisa de tantos cuidados para a classe trabalhadora, cujos efetivos som cada vez mais abundantes e baratos, o que os torna fácil e permanentemente substituíveis. Doutra parte, a dificuldade objetiva para a valorizaçom do capital na Europa obriga a um assalto privatizador que permita aumentar o campo de jogo do mercado em setores antes protegidos da lógica lucrativa, como a educaçom ou a saúde.
 
Atençom: o anterior nom significa que o Estado vaia desaparecer polo seu progressivo definhamento. É só que ele “subcontrata” tarefas que lhe eram próprias, para garantir os negócios em novos ámbitos que antes tinham titularidade pública. Assim, em lugar de dedicar gasto público à populaçom incapaz de assumir o pagamento de serviços de saúde e de educaçom, eles ficam cada vez mais reservados para quem puder pagá-los. Outras tarefas, como a repressiva ou de representaçom exterior do capital, assim como a de “defesa” ou de apoio a setores poderosos em caso de falência, continuam em maos do Estado, totalmente imprescindível e com forte financiamento hoje como sempre no modo de produçom capitalista.
 
E é aí também que entra o rol das ONGs, cuja eclosom coincide com o processo descrito. Como evitar que a exclusom massiva de populaçom sobrante desemboque numha explosom social desses mesmos setores excluídos? Mediante a injeçom controlada de gasto social na manutençom de uns mínimos vitais abaixo dos quais a situaçom poderia tornar insustentável. 
 
Surge assim a era das ONGs, que se constituem em gestoras da funçom que até nom há muito desempenhava o Estado, gerindo um dinheiro público muito inferior ao que supom a profissionalizaçom e cobertura universal dessas funçons. Nom é necessário explicar que elas tenhem um alcance mais limitado e contam sobretodo com mao de obra precarizada, quando nom diretamente com o chamado “voluntariado social”.
 
Repare-se que evito entrar na análise moral da funçom das Organizaçons Nom Governamentais, a cujos serviços, cada vez mais, todos nós somos obrigados a recorrer. Conformo-me com indicar o papel objetivo que elas cumprem, com a melhor ou a pior das intençons (isso nom fai diferença na questom de fundo). 
 
E qual é a questom de fundo? 
 
Que vivemos numha sociedade dominada polo capital, que inevitavelmente caminha e caminhará na direçom aqui indicada. Nom som as necessidades humanas, expressadas em valores de uso, que fundamentam o funcionamento da nossa sociedade: é o aumento da lucratividade do capital, expressada em valor de troca realizado no mercado. Todo o que ficar fora disso torna prescindível, salvo forte conflito acirrado polas luitas de classes, que na atualidade nom se encontram precisamente no seu melhor momento, como sabemos.
 
Parece evidente entom qual deve ser o nosso objetivo: recuperar a centralidade social das necessidades humanas, quebrando o domínio das relaçons sociais de produçom capitalistas e a apropriaçom privada do produto social. Construir umha nova sociabilidade que vaia muito além da administraçom da miséria de aquilo que caraterizamos como a era das ONGs.

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Mauricio Castro Maurício Castro nasceu en Ferrol en 1970. Licenciado em Filologia Galego-Portuguesa pola Universidade de Compostela, dedica-se profissionalmente à docência de Português. É autor de diferentes ensaios, sobretodo de temática lingüística e sociolingüística, como a História da Galiza em Banda Desenhada (1995), Manual de Iniciaçom à Língua Galega (1998), Galiza e a diversidade lingüística no mundo (2001), o Manual Galego de Língua e Estilo (2007) ou Galiza vencerá! (2009). Primeiro presidente da Fundaçom Artábria.